domingo, 15 de julho de 2007

Linguado

A sibila das passerelles anda a fazer os quartos. Que pena o Samuel não andar atrás para lhe aliviar o fardo de ter de fazer e desfazer camas. Pode ser que tire o lugar à Mónica, coitada da rapariga. Partiu-se toda a tirar o curso na Faculdade para vir uma mal desfraldada do 12º ano tirar-lhe o ganha-pão. Neste mundo injusto, os competentes vão para a rua para dar lugar às carinhas larocas que mal sabem abrir a boca.
É uma desavergonhada. Anda o namorado nas obras com vista a proporcionar todo o conforto à menina, que vem de carro, toda triqui-triqui, fazer a limpeza, imaginem só. E a paga dela é meter-lhe os cornos com o gerente da Residencial Clovis, só porque a limpeza não lhe chega e quer um lugar ao sol na recepção, mesmo não sabendo uma só língua estrangeira. De línguas, só entende o linguado, de preferência na lavandaria, o local mais didáctico do estabelecimento.
E ele? Também não é melhor. Já lhe vi a namorada. Anda ela, a ovelhinha mansa, em casa, a fazer-lhe o manjar, a passar-lhe as camisas a ferro, a esfarrapar-se toda num empreguito qualquer para arredondar as contas no final do mês que ele ganha para a sopa, mas não para manter um carro.
Ai que a vida está difícil. Mas pronto, o Samuel encontrou uma compensação para esta vida de merda: acariciar a fruta a pespontar da gaiteira aldeã da lavandaria. Entra com um sorriso beático, de presbitério, no trabalho, e só sai bem depois das horas de serviço porque a residencial revelou-se-lhe ser a vocação mais recente. Zela pelo bem-estar da donzela dizendo-lhe mesmo
- Deixe os quartos para amanhã. A velha gorda da Ermelinda que os faça.
Ela, feliz, aquiesça logo, de imediato. Sorri, sorri sempre.

sábado, 14 de julho de 2007

Preguiça

A D.Ermelinda é tão preguiçosa. Passa a esfregona, come um croissant, espirra, come um pão, tira um lençol, come um iogurte, pega no balde, vai tirar a meia-de-leite. Haja paciência. E ainda mete conversa, muita conversa.
- D.Clotilde, aaah, tou tão cansada. Aaaah. Não me aguento das pernas.
- Já preparou os quartos para as entradas?
- Ainda não. Então eu ainda tenho lençóis por passar a ferro, estive a mudar lençóis. Mas eu já lá vou. Eu já lá vou.
O Samuel tem os seus defeitos, mas dizer que a D.Ermelinda tinha nascido cansada sempre era pedra acertada.
A D.Ermelinda também prima pela linguagem. Hoje de manhã, ouvi-a para um dos artistas encarregue da pintura da fachada da residencial
- Vocês vão continuar com o caganço?
O pintor, envergonhado, cabisbaixo, foi buscar água à lavandaria, mas antes, numa explicação balbuciada a medo, defendera tímido que o caganço era necessário.
Mas o que mais aprecio nela é vê-la a enfiar croissants e pães em sacos à socapa para os filhos. Decorridos uns minutos, vem o obeso do filho buscá-los. Não os come à minha frente, mas os deslizes da juventude são alegremente cantantes
- Ô mãi, já comi três croissants!

Não sabe falar inglês

Ora, ora, a serigaita da limpeza anda a subir de posto. Já fez os primeiros ensaios na recepção. Não sabe falar inglês, mas sabe sorrir. Ainda va lá. No meio da desgraça, há que saber manter o optimismo. A D.Ermelinda da limpeza contou-me que a galdéria estava na recepção sem fazer nada até que foi necessário chamar um casal que ainda dormia no começo da tarde.
- Sandra, chama lá o casal. Acorda-os porque às tantas vem o Samuel e pinta a macaca.
A miúda, aflita, ainda correu à gramática de inglês a ver se encontrava uma solução expedita para acordar dois alemães bêbados da véspera. Mas não encontrou nada. Sempre são mais fáceis as explicações intensivas dadas na lavandaria pelo Samuel...
De tarde, deu-se a passagem de turno. Veio a recepcionista licenciada, enfadada, por ver a espevitada na linha da frente. Teve que ouvir o gerente a gabar os dotes insuspeitáveis da sereia da limpeza.
- Porque a Sandra tem o 12º ano. Não é de se deitar fora. Já viu o mail que ela escreveu? Tirando os erros à trapalhona, está bem, não está?
A Mónica teve vontade de ripostar
- E responde em inglês e em francês? Porque não recebeu ontem o pagamento dos alemães?
Mas ficou-se pela resposta sonhada porque quem manda é o gerente.

quarta-feira, 11 de julho de 2007

Propostas e gorjetas

O gerente tem aversão a gays. Um dia, ouvi-o na recepção a dizer ao colega
- Porque nós não temos interesse nenhum em termos aqui dois gajos aos gritos!
Mas derrete-se todo e até se acabrunha quando vê beldades alemãs ou suecas sibilinas, de movimentos imperceptíveis. Estrebucha dentro do fato como se tivesse os ossos desengonçados ou com falta de óleo.
Quando a residencial abriu, num jacto, confessou-me
- Eu já tive propostas. De homens mesmo. Davam-me cento e tal euros. Tá a ver? Se fosse lá fora, eu partia-lhes a cara, mas estava a trabalhar. É preciso saber lidar com estas situações.
O Samuel também discrimina em função das gorjetas. Peremptório
- Não gosto de franceses. Nunca dão gorjetas. Os ingleses e os espanhóis, sim.
A maior alegria do nosso gerente é fazer de bagageiro. Arrecada umas gorjetas e guarda-as todas para ele. A mim, exigiria que as pusesse no envelope. Vai mas é passear, filhote, que as tuas aldrabices à la gardère, já eu as esmiucei há muito.

A última a saber

Sou porteira, mas não sou cega. O malandro do Samuel deve pensar que ando a dormir. Chega a fazer horas suplementares, mas eu sei que não é por amor ao trabalho. Acentua forçoso
- Ai, D. Clotilde, tá a ver as horas que eu faço?
Pois é, mafioso de Massarelos, eu já te conheço. Os marmelos apetecíveis da lavandaria obrigam-te a laborares horas extras penosas. Nem toda a gente tem sorte de ter horas destas pagas a preço de ouro.
- D. Clotilde, vá dizer à Sandra que depois de terminar o serviço que a quero aqui na recepção para lhe explicar umas coisas.
Filho da mãe, a mim não me queres ensinar tu. Vejo mal, cambaleio, tenho a mania dos diminutivos na sala de pequenos-almoços, erro irreparável.
- Quer um cafezinho? Vai um pouco de leitinho? Deseja um croissanzinho?
Vezes sem conta me deu vontade de contar tudo, tudo, tudo à namorada dele. Havia de saber. Já a vi, tem ar de sonsa. Em geral, são umas coninhas. São sempre as últimas a saber.

segunda-feira, 9 de julho de 2007

Eu na recepção; ele na lavandaria.

Eu só gostava de saber se aquele marmanjo acabou de a apalpar na lavandaria... Veio agora com o olhar aceso, o cabelo desgrenhado, a voz melosa... Veio com ar de quem vem pregar o evangelho quando afirma constantemente que sou uma velha preguiçosa e comilona.
Ele voltou para a lavandaria e pôs a música aos berros aqui no pc. Decerto para eu não ouvir o que se passa lá em baixo. Se ele soubesse que escrevo na net todas as macaquices que ele matraqueia, bem me fazia a folha.
Sou uma simples porteira, é verdade, e ajudo no que posso na limpeza, mas se a miúda anda lá em baixo a "trabalhar", como querem que isto esteja em perfeitas condições de higiene? Se ele se queixar de mim ao patrão, vou dizer-lhe tudo, tudo, tudo.
- Dr. Ricardo, o Samuel anda no marmelanço com a miúda. Não a deixa trabalhar e depois diz que sou eu que não me arrasto das pernas. Ele esquece-se de que quando veio, eu já cá andava.

terça-feira, 3 de julho de 2007

As gorjetas

O gerente anda a meter a mão às gorjetas que eu sei. Quando decide sair para fumar um cigarrito, por vezes, tenho eu que chamar um certo Sr.Teixeira, taxista. O gerente, melífluo
- Que a D.Clotilde gosta tanto do dinheiro como eu, não gosta? - um esboço de sorriso em face empedernida - Então, chame sempre o Sr.Teixeira quando alguém quiser ir ao aeroporto. Ganhamos 5 euros de cada vez. Por isso, pense nisso.
Acontece que já o chamei quatro vezes e nunca vi esse dinheiro entrar no envelope das contribuições. Para onde terá ele ido?
Agora, sou amiga dos hóspedes.
- Querem ir para o aeroporto? Olhe, o metro é mais rápido e mais económico. Num instante, estão lá.
Ficam muito agradecidos, sorriem-me de um rictus luminoso, solar, mas raramente me dão gorjeta.